Desde menus infantis em restaurantes até prateleiras cheias de snacks “amigáveis”, a ideia de que os mais pequenos precisam de alimentos especiais tornou-se um dogma moderno. Mas o que parece um cuidado extra… é, muitas vezes, um negócio com dentes afiados.
Um mercado criado com açúcar e bonecos
Pára tudo e pensa: quem decidiu que as crianças comem nuggets, esparguete à bolonhesa sem tempero ou iogurte rosa com sabor a morango com desenho animado na embalagem? A resposta está menos na nutrição e mais nas margens de lucro.
O conceito de “comida infantil”, como categoria separada da alimentação normal, nasceu há pouco mais de 70 anos. Nos Estados Unidos, depois da Segunda Guerra Mundial, começou a segmentação alimentar com base em idade. Primeiro com papinhas industriais, depois com menus infantis em cadeias de fast food. O comboio chegou à Europa nas décadas seguintes… e não parou mais.
Hoje, o mercado global de baby foods e snacks infantis ultrapassa os 70 mil milhões de euros por ano. É dinheiro a rodos — e paladares a serem moldados à força.
O jogo do marketing: pais esgotados, crianças hipnotizadas
A estratégia é afiada. De um lado, pais sobrecarregados, ansiosos por fazer o “melhor possível” com pouco tempo e informação contraditória. Do outro, crianças expostas desde cedo a mascotes fofinhos, embalagens coloridas e jingles que colam como pastilha nos ouvidos.
Produtos com açúcar e aditivos disfarçados com chamadas de atenção como ‘fonte de cálcio’ ou ‘rico em vitaminas’, têm como objetivo parecer saudável sem o ser. São uma espécie de lobo com a camisa de noite da avózinha.
Mas a verdade crua? Grande parte desses produtos são ultraprocessados. Contêm sal, açúcar, óleos refinados e aromas artificiais em doses que distorcem o paladar e viciam o cérebro.
O paladar também se educa
Bebés nascem com preferências básicas — doce é segurança, amargo é suspeito. É instinto. Mas o gosto, esse, constrói-se. Como um músculo. E se alimentarmos esse músculo com alimentos industriais, ele cresce preguiçoso, exigente, dependente.
Estudos mostram que crianças expostas precocemente a sabores reais — legumes, especiarias leves, frutas amargas, desenvolvem maior tolerância e curiosidade alimentar. Por outro lado, as que vivem a pão e iogurtes adocicados têm maior propensão à seletividade, ao excesso de peso e, mais tarde, a doenças crónicas.
Os que estão a dizer “basta”
Nem tudo é desolador. Há pais e profissionais que estão a virar a mesa. Projetos de educação alimentar, menus familiares sem distinção entre “comida de adulto” e “de criança”, e até influencers de maternidade que rejeitam snacks “especiais” com nomes fofinhos.
Na Escola da Comida (Lisboa), as crianças comem lentilhas, caril suave e peixe no forno, sem menus paralelos: são tratados como comensais de verdade, não como estômagos à parte.
E funciona. Quando o sabor é explorado sem chantagens ou prémios, o prazer da comida real… ganha.
Então, e agora?
Desconstruir o mito da “comida de criança” não é só uma questão de saúde. É devolver à infância o direito ao sabor, à diversidade, à curiosidade à mesa.
— Porque é que um adulto pode comer lentilhas com limão, mas uma criança só tem direito a arroz branco com frango seco?
— Porque é que dizemos “ele não gosta de legumes” antes de lhe darmos hipótese real de os provar?
Não há fórmula mágica. Mas há um princípio simples: comida boa é para todos. E quanto mais cedo se partilhar o prato, menos espaço haverá para as embalagens que gritam promessas… e vendem problemas.