A realidade que se sente em contexto escolar é cada vez mais alarmante. Metade da turma parece carregar quilos a mais. A outra metade teme chegar lá. De acordo com a DGS, 31,9 % das crianças em contexto escolar em Portugal apresentam excesso de peso e 13,5 % já estão em obesidade, e a curva voltou a subir depois de 2019 (1). Alerta vermelho? Sem dúvida. Mas há luz ao fundo da mesa de jantar.
Quem manda no prato… e no apetite?
Entra em cena a sDOR – Divisão de Responsabilidades na Alimentação, proposta pela nutricionista-terapeuta Ellyn Satter. Regras simples: pais decidem o quê, quando e onde; crianças escolhem se e quanto. Parece pouco? É revolução silenciosa. Ao entregar o “volante” da saciedade às miúdos, o método cultiva a auto-regulação energética e afasta dietas punitivas.
Numa entrevista à revista Sábado, a psicóloga e investigadora da Universidade do Minho — e voz crítica das abordagens focadas apenas na restrição calórica — Sofia Marques Ramalho recorda: «Associa-se a obesidade à preguiça, e isso não é verdade; o ambiente familiar é decisivo.»
O que diz a ciência (não é só bom-senso)
- Um estudo transversal em 2024 ligou maior adesão à sDOR a níveis mais altos de eating competence nos cuidadores — proxy robusto para padrões alimentares saudáveis em casa mdpi.com.
- Investigação anterior mostra que famílias que seguem a sDOR relatam menos lutas de poder e crianças mais aptas a regular porções, mesmo quando expostas a snacks tentadores researchgate.net.
- O próprio Ellyn Satter Institute sublinha: seguir a sDOR deixa o peso “desacelerar” naturalmente, sem um tipo de vigilância policial sobre cada colherada ellynsatterinstitute.org.
Não se trata de haver uma certa libertinagem à mesa. Trata-se de structure plus trust, ou seja, criar uma estrutura com confiança.
Dietas restritivas: solução curta, problema longo
Cortar porções, proibir “gulodices”, moralizar comida. Todos já vimos receitas “milagrosas” assim. Regra geral, funcionam… até deixarem de funcionar. Estudos longitudinais associam restrição precoce a maior IMC na adolescência e relação disfuncional com a comida . Com a sDOR, o foco muda: menos policiamento, mais competência alimentar.
E na prática escolar e clínica?
Educadores e pediatras podem — e devem — ser peças-chave. O psicólogo José Cunha (UMinho) defende integrar sDOR nos currículos de educação alimentar, “porque ensinar matemática e proibir bolachas não basta”. Curioso, não? A DGS já cita o modelo nos manuais de boas práticas, mas sem torná-lo obrigatório — fica a recomendação.
Caixa de ferramentas sDOR ⚙️
Faça isto | Evite isto |
Defina horários regulares de refeições e lanches. | “Só comes sobremesa se acabares a sopa.” |
Sirva pelo menos um alimento de conforto (pão, fruta) em cada refeição. | Retirar o prato quando acha que a criança já “comeu demais”. |
Coma em conjunto, sem tablets nem telejornal de fundo. | Usar “light” e “gordo” como insultos ou elogios. |
Confie: o corpo da criança sabe quando chega a saciedade. | Contar calorias à frente dela ou comentar o peso alheio. |
(Adapte-se ao contexto; a consistência vence a perfeição.)
Alimentação intuitiva: vacina psicológica contra distúrbios alimentares na adolescência?
Tratamentos clássicos centrados apenas em restrição calórica mostram eficácia limitada e podem aumentar o risco de perturbações do comportamento alimentar. A literatura mais recente aponta que aliar a divisão de responsabilidades (sDOR) a uma prática precoce de alimentação intuitiva oferece um caminho promissor: promove crescimento adequado, bem-estar psicológico e, potencialmente, imuniza contra padrões como anorexia, bulimia ou compulsão alimentar na transição para a idade adulta.
Uma aposta, dois caminhos
A Alimentação Intuitiva (AI) valoriza sinais internos — fome, saciedade, prazer — em detrimento de regras externas. O conceito não é novo, mas só há meia dúzia de anos começou a ser medido em larga escala. O Project EAT, que segue adolescentes dos 14 aos 22 anos, trouxe dados impressionantes: quem praticava AI na puberdade exibiu cerca de -74 % de probabilidade de compulsão alimentar e menos sintomas depressivos oito anos depois (4). Coincidência? Parece que não… aumentos no score de AI ao longo do tempo protegeram do mesmo modo.
Quatro anos após aquele artigo, os mesmos investigadores afinavam a lente e voltavam a encontrar a mesma melodia: comer pelos sentidos, e não pela culpa, anda de mãos dadas com auto-estima alta e corpo vivido sem guerra (5).
E por cá?
Portugal não escapa ao susto: mais de 10 000 diagnósticos activos de perturbação alimentar nos Centros de Saúde, o valor mais elevado desde que há registos; de acordo com uma reportagem da Sic Noticias, oito em cada 100 raparigas já mostram sintomas clínicos (6). Psicólogos da Associação Portuguesa de Perturbações do Comportamento Alimentar (APPCA) falam num “pico pós-pandemia de casos graves em menores”, agravado pelas redes sociais.
Perante este cenário, será a AI um antídoto viável ou só mais um “buzzword” importado?
Como funciona?
- Neutraliza a cultura da dieta — Se não há “bom” vs. “péssimo”, cai a tentação de esconder comida ou compensar com vómitos.
- Atenua a comparação social — estudo de 2024 mostrou que depressão medeia a ligação entre comparação física e AI; mais AI, menos ruminação negativa (7).
- Reforça a auto-eficácia — miúdos que decidem quando parar de comer sentem controlo interno, não externo; controlo interno correlaciona com menor risco de distúrbios.
Pergunta retórica: se a mente aprende cedo a confiar no corpo, porque haveria de apostar em dietas radicais mais tarde?
O que ainda falta saber? …
- Causa ou consequência? Mesmo os estudos longitudinais não provam que AI seja a origem da protecção; talvez famílias com menos obsessão corporal promovam, em simultâneo, AI e saúde mental.
- Diversidade cultural — maior parte das amostras vem dos EUA; dados europeus (e lusos) ainda são escassos.
- Escalas infantis — medir “fome” num miúdo de seis anos exige linguagens e instrumentos que a ciência está a afinar agora.
Caixa de ferramentas para pais
Experimente | Evite |
Perguntar “De que precisas para ficares satisfeito?” | “Come tudo, há meninos que passam fome.” |
Servir variedade e incluir sempre um alimento “neutro” (pão, fruta) | Classes de “proibido” vs. “permitido”; gera fascínio pelo interdito |
Desligar ecrãs e comentar o sabor, não a quantidade | Usar comida como prémio ou castigo |
Dar o exemplo: parar quando já não apetece, mesmo que haja sobremesa | Lamentar-se em voz alta sobre dietas ou “pneus” |
(Adaptado de workshops do Ellyn Satter Institute e da APPCA.)
AI não é injeção mágica. Não livra o adolescente de ansiedade social nem apaga algoritmos que vendem corpos irreais. Contudo, ao ensinar escuta interna em vez de vigilância externa, reduz o combustível que muitas vezes alimenta a fogueira dos distúrbios alimentares. Num país onde uma em cada dez raparigas já luta com a comida, talvez valha a pena trocar balanças por bússolas internas. Afinal, não é isso que queremos para a próxima geração — que o corpo seja casa, não campo de batalha? 💚
Fontes:
1. alimentacaosaudavel.dgs.pt
2. ellynsatterinstitute.org
3. sabado.pt
4. pmc.ncbi.nlm.nih.gov
5. sph.umn.edu
6. sicnoticias.pt
7. nature.com